Consciência
da Escassez?
Hoje, em todo o país,
discute-se a questão da cobrança pelo uso da água.
Esta discussão não é, sem embargo, decorrente de
a maioria da população ter tomado consciência da
escassez da água, da necessidade de preservar e bem gerir este
elemento vital e finito. Pode-se dizer que não é uma preocupação
original. É uma discussão decorrente de uma preocupação
derivada da conveniência de se aprovar uma lei estadual, uma vez
que a União já completou a aprovação da
legislação federal e a lei que prevê a criação
da Agência Nacional das Águas. A aprovação
da cobrança pelo uso da água, no âmbito federal,
não nos convém inteiramente. Em primeiro lugar, porque
a lei federal não prevê um fundo, como o que possuímos
em São Paulo - o Fundo Estadual de Recursos Hídricos -
FEHIDRO. Os recursos arrecadados vão para o caixa geral da União.
Em segundo, a lei federal não prevê a obrigatoriedade desses
recursos serem aplicados no Estado em que forem arrecadados. Ela apenas
diz que preferencialmente serão aí aplicados. Sabemos
que as necessidades de saneamento dos outros estados são maiores
do que as do Estado de São Paulo. Por isso, é razoável
pressupor que os recursos que daqui saírem, dificilmente voltarão.
Da forma como a lei federal prevê, não se poderá
evitar que os recursos captados nos estados mais desenvolvidos sejam
aplicados naqueles que deles mais necessitem ou que sejam capazes de
maior pressão política.
Diversos estados podem instituir por decreto a cobrança pelo
uso da água, porque a Constituição Estadual, que
votaram em 1989, já previa a cobrança. Para efetivá-la,
basta o governador baixar um decreto, regulamentando a prescrição
constitucional. O Ceará já fez isto.
São Paulo poderia instituí-la, uma vez que a Constituição
paulista prevê expressamente as cobrança pelo uso da água.
O Governador Covas, no entanto, preferiu encaminhar à Assembléia
Legislativa um projeto de lei que contempla as desigualdades, permitindo
tratar de forma diferente as regiões onde há mais água
e aquelas onde já ocorre escassez. Além disso, orientou
para que ocorresse uma ampla discussão permeando a instituição
da cobrança, de forma a ajudar a obter um relativo consenso que
redundasse na aceitação da lei, encarando-se como uma
contribuição para alcançar metas regionais relacionadas
com a reversão do processo de degradação das águas.
Além disso, a aprovação de uma lei oferece maior
respaldo e segurança jurídica do que um decreto.
O projeto de lei enviado à Assembléia possui dispositivos
de grande relevância. No primeiro, o Conselho Estadual de Recursos
Hídricos é quem decide o preço a ser cobrado, fixando
um limite. Cada comitê de bacia, partindo desse valor, pode definir
menores preços a serem cobrados de cada um dos setores usuários,
conforme as atividades ou usos.
No segundo, os recursos permanecem na bacia onde foram arrecadados.
Devem nela ser aplicados integralmente.
Terceiro, não se cobra dos agricultores por quatro anos. É
o prazo necessário para o cadastramento completo dos irrigantes
e demais usuários agrícolas.
Além disso, cada comitê poderá priorizar a cobrança
de quem polui e cobrar muito menos dos que simplesmente captam água.
Ou, ainda, cobrar apenas dos que poluem. Isto é muito importante:
sobre-taxar o poluidor e sub-taxar o usuário que não polui,
só consome água. No México, quando se iniciou a
cobrança pelo uso da água, metade dos recursos arrecadados
advinha da cobrança de quem capta e a outra metade, daqueles
que poluem a água, ou seja, despejam seus poluentes na água.
Nos anos seguintes, a proporção foi mudando. Diminuíram
os valores cobrados de quem captava, e aumentaram os de quem poluía.
Hoje, 90% dos recursos arrecadados advém de quem polui, e só
10% de quem capta água.
A forma como se pretende instituir a cobrança em nosso Estado,
segundo cálculos preliminares, indica o valor de R$0,o1 por metro
cúbico. Uma pessoa consome entre 150 e 200 litros por dia. Quatro
pessoas consomem de 600 a 800 litros por dia. Em 30 dias, 18 a 24 m3.
Assim, no fim de um mês, o montante ficará entre R$0,18
e R$0,24, valores praticamente insignificantes.
Da mesma forma, também foi feito o cálculo do pagamento
a ser realizado por uma cervejaria, no interior de São Paulo,
e que atualmente consome por dia um milhão de litros, sem nada
a pagar. O consumo total, em 30 dias, é portanto de 30.000 m3.
Esse estabelecimento perfurou poços e tira a água do aqüífero,
para produzir cerveja e refrigerantes e deve passar a pagar R$300,00
por mês. Ao transmitirmos este cálculo à administração
da cervejaria, a notícia foi recebida com sensação
de surpresa e de alívio, pois esperavam valor muito maior. Contudo,
os cálculos referem-se apenas a um lado da moeda. Nele não
está incluída a cobrança referente aos efluentes
da cervejaria. Se eles continuarem a ser despejados sem tratamento nas
águas dos rios, implicarão em um pagamento de valor quase
100 vezes maior, o que, com certeza, induzirá a empresa a instalar
sua própria estação de tratamento, para eximir-se
do pagamento.
É exatamente neste ponto que fica claro o caráter direcionador
da lei de cobrança pelo uso da água: não é
um simples instrumento arrecadatório. É um instrumento
de gestão. Melhor do que cobrar de quem polui, para investir
na reversão da degradação por ele causada, é
induzir quem polui a deixar de faze-lo.
De qualquer forma, não podemos desprezar o volume de recursos
que poderão vir a ser arrecadados e que poderão vir a
ser obrigatoriamente ser aplicados em recursos hídricos. Estima-se
que poderão ser obtidos no Estado de São Paulo, R$ 55
milhões por ano, advindos da cobrança pela captação
e consumo de água e R$ 300 milhões advindos da cobrança
relacionada à poluição das águas.
O relevante, além disso, é lembrar que não existe
mais a opção de cobrar ou não pelo uso da água.
O que existe é cobrara dentro de um arcabouço definido
pelo Estado de São Paulo, retendo os recursos nas regiões
hidrográficas onde foram gerados, ou cobrar conforme o figurino
federal, repetindo o modelo que destina recursos do Estado para o resto
do país.
Por fim, cabe lembrar algumas observações do Ministério
da Saúde: 70% dos leitos dos hospitais são ocupados por
pessoas que contraíram moléstias transmitidas pela água.
Isso condiz com os dados da Organização Mundial de Saúde,
os quais mostram que para cada dólar aplicado em saneamento (em
esgoto recolhido e tratado, em água tratada), economizam-se 5
dólares, nos 10 anos seguintes , em posto de saúde, em
atendimento médico, em hospitais. Investir em saneamento é
investir em saúde preventiva e economizar em saúde curativa.
Por tudo isso, a recuperação da qualidade das águas
é mais do que um programa ambiental. É uma questão
de saúde pública e bem estar social.